Cidreira, meados dos anos 1960. Seis crianças mais quatro adultos em um Gordini - cinto de segurança, nem pensar; tampouco existia ar-condicionado. Gasolina barata, isso sim!
A casa de madeira tinha dois quartos, então os primos dormiam todos na sala. Na hora do banho, era aquela fila, todos esfomeados pelo cheiro do arroz com linguiça.
As fotos em preto e branco revelam meninas em pose de miss, tias/mães com maiô Catalina e o guri pronto para o futebol com os homens da casa.
Além das infindáveis tardes de chuva sem televisão, das idas à praia sob o sol escaldante, dos tropeções no calçamento irregular e do pão com goiabada e areia, os acidentes se avivam na lembrança.
Uma água-viva grudada em um corpinho que era só braços se agitando, um cisco no olho que deixou a prima em casa um dia inteiro (isso sim era castigo), uma pane mecânica lá nas dunas, bem longe de casa.
O carro apagou no meio da rua e lá se foi a meia dúzia mais o tio a empurrá-lo até pegar. Alegria, conseguimos! E meu pai seguiu em frente, fingindo que nos deixaria para trás. O que ele não percebeu é que a menorzinha da turma continuava agarrada ao para-choque traseiro e foi sendo arrastada contra os paralelepípedos.
Quanto mais gritávamos para ele parar, mais achava que estávamos brincando e continuava dirigindo. Foi quando percebeu pelo retrovisor que estávamos acenando de longe e enxergou a ponta dos cabelos da coitadinha esvoaçando. Parou devagar para que ela não batesse os dentinhos contra o carro e desceu consternado.
Mãe e tia nos receberam em casa apavoradas e todos contavam a história de novo. Mais uma ida ao pronto-socorro - quase viramos pacientes preferenciais!
Confesso que senti inveja da caçula por toda atenção que recebeu a partir daí, especialmente quando era levada à praia nos ombros do meu tio, um galã alto e bondoso. Valeu a pena ter ralado os joelhos.
Ananyr Porto Fajardo é pesquisadora, professora, tradutora, escritora, narradora da vida. Curiosa pelas palavras e memórias que nos habitam e esperam por compartilhamento. Participante das Oficinas Literárias Santa Sede desde 2019. Coautora de cinco coletâneas de crônicas. Participa do
Curso Online de Formação de Escritores.
